Márcia Ribeiro não vê a hora de limpar seu nome. A assistente de serviços gerais de 55 anos está com dívidas de cartão de crédito e crédito da loja há vários anos e, com seu nome negativo em seus registros de dívidas inadimplentes, ela não pode comprar vários itens necessários para sua casa.

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“É muito ruim para as pessoas quando querem comprar alguma coisa e não podem porque têm atrasos. Eu queria comprar algumas coisas para casa que preciso e não posso comprar por causa dessas dívidas: guarda-roupa, fogão. Agora eu tinha dívidas na TV e no armário mas era no cartão de crédito do meu irmão. Se eu fosse pagar conta, compraria com cartão”, revela.

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Márcia espera poder participar do Desenrola Brasil, programa emergencial de renegociação de dívidas para pessoas físicas inadimplentes lançado nesta terça-feira (06) pelo governo federal em Brasília. “Vai ser uma ‘entrada’ (sic) para mim porque vou saldar as minhas dívidas e poderei comprar as minhas coisas,” diz.

A Medida Provisória (MP) 1.176/2023 que institui o programa foi publicada no Diário Oficial da União nesta terça-feira (6) e entra em vigor imediatamente. Mas, para virar lei, terá que ser votada e aprovada pelo Congresso Nacional em até 90 dias.

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A Desenrola Brasil pretende juntar devedores e credores para que a dívida seja renegociada e a situação de inadimplência seja encerrada. Serão duas faixas. Na primeira, pessoas que ganham até dois salários mínimos ou que estão inscritas no Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico) – e que estavam negativadas até 31 de dezembro de 2022 – poderão pagar suas dívidas em até R$ 5 mil.

Prazo

O pagamento pode ser feito à vista ou parcelado em até 60 meses com desconto e juros menores. O dinheiro para quitar dívidas pode ser obtido por meio de empréstimo em instituição financeira, que pode ser garantido pelo Fundo de Garantia Operacional (FGO) do Governo Federal.

Segundo o Ministério da Fazenda, a segunda linha é destinada apenas para pessoas com dívidas no banco, que pode oferecer a seus clientes a opção de negociar diretamente. Essas operações não serão garantidas pelo FGO.

De acordo com o Ministério da Fazenda, o programa funcionará por meio de um leilão reverso entre credores, organizado por modalidade de empréstimo, onde quem der o maior desconto será incluído no programa, submeterá a dívida descontada para renegociação com pessoa física e terá garantia que sua dívida será paga.

Quem oferecer um desconto menor ficará de fora do programa. Assim, é possível que o devedor não encontre todas as suas dívidas a serem renegociadas no Desenrola.

Especialistas

O diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), Henrique Lian, considera o programa “extremamente relevante no atual contexto de superendividamento de parte significativa da população brasileira”.

Para a economista Carla Beni, da Fundação Getulio Vargas (FGV), a medida é importante para que as pessoas com menor renda possam “voltar a respirar e até voltar a consumir”. “A delinquência dificulta muito a vida da pessoa, afeta até a saúde mental”, diz.

Eles acreditam que o programa pode reduzir em até 40% a inadimplência no país, que atinge hoje 66,08 milhões de pessoas, ou 40,6% dos brasileiros adultos, segundo dados divulgados em maio pela Confederação Nacional dos Comerciantes (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). No entanto, Carla ressalta que será importante pensar em campanhas para garantir a adesão dos mutuários ao programa.

“Você vai precisar de orientação e muita divulgação porque vai precisar de um celular e tudo vai ser online. Como o aplicativo será utilizado, como será inserido na plataforma e qual será a facilidade de conexão, é necessário aguardar os próximos passos. Como temos experiência com o Pix e o Brasil tem uma adesão espetacular, acredito que temos não só o status técnico e tecnológico, mas também a adesão da própria população [ao novo programa]. Ela já está acostumada a usar o celular”, destaca.

Consumo

Izis Ferreira, economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), acredita que o programa pode aumentar o consumo das famílias brasileiras.

“Hoje, o crédito funciona como um importante determinante do consumo, não só para produtos que precisam de prazo de vencimento, com maior valor agregado, mas também para produtos e serviços cotidianos e de consumo imediato. Hoje, o crédito, portanto, sustenta o consumo de necessidades básicas de vida e produtos de maior valor agregado”, enfatiza.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirmou em nota que o programa está em linha com as negociações que ocorreram entre a instituição e o governo federal nos últimos meses.

“Uma vez operacionais, os bancos vão contribuir para que o Desenrola reduza o número de consumidores negativados e ajude milhões de cidadãos a reduzir suas dívidas”, diz a Febraban.

Segundo Ione Amorim, coordenadora de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a urgência com que o Desenrola Brasil foi lançado é importante, mas falta um pouco mais de diálogo com a sociedade civil. E então há algumas dúvidas sobre o programa.

Questiona, por exemplo, como os consumidores que recorrerem ao Desenrola Brasil serão tratados pela instituição financeira no futuro. “Hoje, quando temos um desconto muito grande [no banco], esse consumidor fica limitado nessa instituição para tentar novamente o empréstimo”, opina.

Além disso, Ione chama a atenção para dívidas que já prescreveram e não devem mais ser cobradas, mas podem ir parar no Desenrola. “Quem fará essa análise?” ele pergunta.

Descontos

Outro ponto que ela levantou é sobre o valor dos descontos. “Essa população de baixa renda é extremamente assediada por empresas que oferecem empréstimos extremamente predatórios [com juros altíssimos]. Então qual é o valor desses contratos que serão objeto desse acordo? O valor todo já incluindo juros abusivos? Quando você fala em desconto e não tem parâmetro, qual é o benchmark?”, questiona.

Além do programa, a preocupação de Ione são as dívidas futuras que podem voltar a afetar os consumidores após o término do programa, em dezembro deste ano.

“Esse consumidor, sem nenhum preparo, que foi assediado [para pegar um empréstimo], continua refém do mesmo tipo de abordagem. É muito provável que uma parcela desse público volte a se endividar até dezembro, que é o prazo final desse programa. Uma parcela muito grande desse segmento, que ganha menos de dois salários mínimos, são aposentados e aposentadas, que estão muito expostos à questão do crédito consignado”, alerta Ione.

Ione disse esperar que a regulamentação seja implementada pelo Ministério da Fazenda e a apreciação do assunto pelo Congresso Nacional abra portas para um maior diálogo com as entidades de defesa do consumidor.

Henrique Lian, da Proteste, disse acreditar que o programa pode ser complementado no futuro com “medidas de natureza regulatória e educacional para prevenir a insolvência recorrente”.

O interesse é o mesmo de Isis Ferreira. Para ela, se não houver programa de educação financeira para as famílias, corre-se o risco de a inadimplência continuar sendo um problema cíclico no país, com períodos de melhora e outras deteriorações.

Segundo o CNC, em maio deste ano, o número de pessoas com dívidas há mais de 90 dias representava 45,7% dos inadimplentes. Essa é a maior taxa mensal em três anos e vem crescendo desde dezembro de 2022 (43,9%).

“O crédito ganhou importância como condição de consumo no pós-pandemia. As pessoas gastam muito em seus cartões de crédito. Diante desse contexto, é preciso se preocupar: vamos salvar esse consumidor da insolvência, mas será que ele vai entender depois que precisa ter um pouco mais de cuidado, programação e planejamento na hora de usar o crédito? Ao mesmo tempo em que o credor realiza a renegociação, ele deve estimular intensamente a consciência financeira desse consumidor. Caso contrário, continuaremos presenciando esse ciclo de inadimplência”, diz o economista.

Antes do lançamento da MP do Desenrola Brasil, o CNC estimava que o percentual de famílias com dívidas acima de 90 dias só diminuiria no final do ano, fechando 2023 em 44,5%. Porém, com o lançamento do programa, a confederação fará uma nova previsão.

Inadimplência

Segundo Isis Ferreira, apesar do maior foco do programa no público de baixa renda, também houve aumento da inadimplência na classe média. Portanto, seria importante para ela apoiar uma nova discussão sobre dívidas também para essa categoria de renda.

Para quem luta para manter o orçamento sob controle, a economista Carla Beni tem duas dicas: a primeira é conversar com todos os membros da família para entender quanto pode ser gasto sem reduzir a renda. A segunda é anotar todas as contas que precisam ser pagas em uma planilha de computador ou mesmo em um pedaço de papel.

“As pessoas deveriam conversar mais em família sobre suas contas e dívidas”, explica Carla. “E também faça uma lista das contas que você tem que pagar. Um simples pedaço de papel com uma caneta ajuda muito a colocar – nos próximos meses – todas as contas que essa família tem que pagar e que já estão comprometidas. Também pode ser colocado na porta da geladeira. Isso faz com que toda a família caminhe na mesma direção, pois a redução de dívidas traz alívio, conforto e qualidade de vida para todos da casa”.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse nesta terça-feira (6) que o Desenrola terá um segmento de educação financeira. Na segunda-feira (5), Haddad disse que o programa deve entrar em vigor em julho.


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